"O sertão tem tudo que se precisa. Se faltar, a gente inventa". Quem já foi a Valente, BA, conhece o lema da Apaeb - Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira. Está pintado em muros, afixado em quadros de aviso, estampado em faixas, cartazes e outdoors de beira de estrada. Encima todas as publicações da entidade, sob cujas asas os sisaleiros voaram pela primeira vez além de suas lavouras, decolando dos campos arcaicos de produção para competir no mercado mundial de produtos industrializados.
Fundada em 1980 por jovens agricultores dispostos a valorizar a cultura, organizar os trabalhadores e eliminar os atravessadores na comercialização da fibra, principal subproduto do sisal, a Apaeb virou modelo de associativismo no país, modificando para sempre a vida de milhares de sertanejos. A própria sigla da entidade reflete a transformação. Batizada Associação dos Pequenos Agricultores do Município de Valente, passou e se chamar (em 2004) Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira - mais condizente com seu status atual.
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Ismael, com fibras tingidas; ao lado, varais apinhados com fibras ainda não beneficiadas secando ao sol
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Um dos artífices da mudança é seu diretor executivo, Ismael Ferreira de Oliveira, de 47 anos, premiado no exterior como empreendedor social por várias organizações ligadas à economia solidária.
"Ninguém faz nada sozinho", diz ele, modesto. "O que conseguimos até aqui é fruto do esforço coletivo de pessoas que compartilhavam o mesmo sonho: melhorar a vida da população e desenvolver o sertão. Mas ainda há muita coisa a fazer", ressalva, referindo-se ao sistema de extração da fibra, antiquado, improdutivo e perigoso: as folhas, separadas do caule a golpes de facão, são levadas em lombo de jumento até a desfibradora, chamada na região de "paraibana". É onde mora o perigo. Consiste num rebolo dentado com hastes afiadas girando ao redor de um eixo central, movido a diesel. É um equipamento simples, com uma abertura através da qual o cevador - encarregado da extração - introduzirá as folhas, uma após outra, numa luta incessante: a máquina "chupa" a folha para esmagá-la, enquanto o homem a puxa em sentido contrário, para desfibrá-la. Se bobear, perde os dedos ou a mão. "Nosso punho não passa pela abertura que dá no rebolo. Mas a fibra pode enroscar no dedo, a gente sentir dor e abrir a mão... Aí não tem jeito", diz Reinaldo de Oliveira, de 60 anos, ex-cevador na comunidade Barriguda.
O sisal é uma espécie de poupança: produz o ano inteiro, exceto nos períodos de estiagem prolongada, quando desidrata e murcha. O aproveitamento, porém, é mínimo - apenas 5% (as fibras) são utilizados. A mucilagem resultante do processo de desfibramento, de grande valor como ração animal, geralmente é desperdiçada.
TERRA DO SISAL |
Distribuição espacial dos principais municípios produtores de sisal na Bahia, destacando-se, no nordeste do estado, a região de Valente (em bege, no mapa) |
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Poucos produtores rurais, como José Elias Lopes, o Zé de Jorge, do Sítio do Meio, a utilizam como reserva alimentar para enfrentar os períodos de seca. Fenação, silagem, energia solar, cisterna para captação de água de chuva, misturas para aumentar o valor protéico da ração (mucilagem com farinha de milho, por exemplo), Zé de Jorge mostra que é possível viver com dignidade na caatinga. "A gente tem que esperar o tempo ruim. Não pode confiar que será bom no ano que vem", diz, precavido.
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Jumento vem com folhas e vai com fibras, sob as vistas do botador e da estendedora
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A "paraibana" e o desperdício são frentes de batalha ainda não vencidas, conforme Ismael. Segundo levantamento da Apaeb, duas mil pessoas foram mutiladas no semi-árido nordestino desde o início da exploração comercial da planta. Nos últimos anos, no entanto, o número de acidentes caiu praticamente a zero na região, graças à disseminação de informações, apoio técnico, diversificação da produção nas propriedades e novas oportunidades para os sisaleiros. Com a eliminação dos atravessadores, garantia de beneficiamento na batedeira comunitária e a possibilidade de comercialização através da entidade, o ganho aumentou, diminuindo a pressão sobre os trabalhadores.
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Fibras tingidas secando ao sol no pátio da fábrica de tapetes e Seu Elias com as mãos cheias de mucilagem
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"Antigamente, a carga horária era brutal. Muitos se acidentavam por cansaço. Afinal, tinham de produzir ou passariam fome", diz Ismael, com conhecimento de causa. Filho de pequeno produtor rural, trabalhou nos campos de sisal desde menino, como era comum na região. "Aos sete, oito anos, a gente já estava na roça. Era duro ver nossos pais batalhando o dia inteiro sob sol forte para ganhar uns trocados", lembra.
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Cevador da comunidade da Brriguda, em Valente, na luta diária contra a "paraibana"
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A Apaeb surgiu dessa indignação. Nos primeiros anos, contou com ajuda de ONGs - Organizações Não Governamentais como o MOC - Movimento de Organização Comunitária, sediado em Feira de Santana. Depois, de instituições internacionais ligadas à economia solidária. Dos sucessivos governantes estaduais e federal, quase nada. "Tivemos mais informações sobre a produção brasileira e o mercado mundial no exterior, participando de eventos da FAO - Fundo das Nações Unidas para a Agricultura, por exemplo."
Em 1991, Ismael conheceu indiano Mohammed Yunus, fundador do Banco Grameen, ao receber em Roma, Itália, o Prêmio de Empreendedor Social da Ashoka, instituição civil cuja missão é identificar e investir em indivíduos como idéias inovadoras capazes de resolver problemas sociais graves. Yunus ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 2006 por seus esforços para promover o desenvolvimento econômico e social por meio do microcrédito - no caso, em Bangladesh, Ásia, onde nasceu. Por coincidência, a Apaeb se destacara por outra iniciativa ousada no setor. Sem capital de giro nos primeiros anos, propôs à comunidade uma poupança, garantindo remuneração equivalente à da poupança oficial. Cada sisaleiro depositaria quanto pudesse - dez reais, por exemplo.
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Fardo de fibra em processo de tingimento; ao lado, detalhe de acabamento de carpete na fábrica
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Ismael: "a Apaeb resulta do esforço de pessoas que compartilharam o mesmo sonho"
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Poucos na cidade acreditavam que desse certo. "Gente pobre, que mal conhece a cor do dinheiro e nunca pisou num banco?".
A resposta veio rápida. Em dois anos, a associação captou o equivalente a 170 mil dólares, quantia que lhe permitiu exportar pela primeira vez. Depois, um sucesso atrás do outro: a fábrica de tapetes e carpetes, com 602 funcionários, e produção anual de 720 mil metros quadrados de tapetes, o laticínio, que beneficia leite de cabra, também distribuído aos moradores, o curtume, a batedeira comunitária, capaz de beneficiar 4,7 mil toneladas de sisal, o supermercado (o maior da cidade) e outros projetos econômicos cujos recursos vão dar sustentabilidade aos programas sociais da entidade. A lista é grande: a Casa da Cultura, o Cais - Centro de Aprendizagem e Intercâmbio de Saberes, a Escola de Informática e Cidadania, a Casa do Mel, TV e rádio comunitários, distribuição de mudas frutíferas e forrageiras, kits de irrigação, perfuração de poços artesianos, cursos de capacitação, um clube social com quadras esportivas e piscina, e a Escola Família Agrícola (leia Teoria e prática).
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Produção de tapetes e carpetes: 720 mil metros quadrados e 2,1 toneladas anuais de fios naturais
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A associação movimenta mais de dez milhões de reais na economia local, em pagamento de salários e compra de materia prima. O sisal já foi conhecido como ouro branco. A tonelada de fibra chegou a valer mil dólares no mercado internacional. Depois, caiu para 150 dólares, com graves prejuízos econômicos e sociais. Nos últimos anos, começou a recuperar seu valor. No mês passado, a cotação alcançou 435 reais. A Apaeb é administrada por um conselho de 24 membros, todos pequenos produtores. Suas decisões afetam diretamente cinco mil pessoas no município e dez mil na região. Possui 562 associados, donos de um patrimônio invejável. A fábrica de tapetes é a única empresa do setor em que os empregados são os donos. Nada mal para quem mal conseguia sustento próprio há 26 anos.
Valente situa-se no meio da região sisaleira da Bahia, responsável por 85% da safra nacional. O estado abriga 52 municípios produtores, e colhe cerca de 180 mil toneladas anualmente, com produtividade média de uma tonelada por hectare. O Brasil lidera o ranking mundial, com 210 mil toneladas por ano de fibra seca, metade das quais exportada. Os Estados Unidos e a China são os principais compradores. México, Quênia, Tanzânia e China seguem atrás do Brasil no ranking da produção.
Espécie de origem mexicana, o sisal (Agave sisalana) foi introduzido no início do século passado na Bahia, Paraíba e Rio Grande do Norte. É uma planta xerófila, perene, com vida útil de oito anos, e brotações ao redor de um bulbo central (o caule), das quais surgirão novas folhas no ano seguinte ao corte.
Cada pé produz de 50 a 60 folhas anualmente - ásperas, alongadas, com um espinho de dois centímetros na extremidade, atingem até 1,80 metro de comprimento e 15 centímetros de largura. A colheita inicia-se de 20 a 30 meses após o plantio. De grande aceitação no mercado internacional, a planta tem mil e uma utilidades. Dos resíduos da folha, faz-se acetona, clorofila, amônia, adubo, etc. Da fibra, cordas, barbantes, carpetes, tapetes, capachos, filtros, papéis finos e remédios, entre outros produtos.
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Detalhe da Faustino 5, expelindo fibras
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A "paraibana" começou a funcionar em meados do século passado, em substituição ao farracho, espécie de guilhotina com duas lâminas paralelas entre as quais se introduzia a folha, puxando-a para desfibrar. Desde então, vários protótipos mecânicos criados no Brasil e no exterior foram testados no campo, nenhum com resultados satisfatório. O mais promissor, na avaliação dos técnicos da associação, é o Faustino-5, desenvolvido (por ironia) por um paraibano: o mecânico, e também agricultor, José Faustino da Silva, de Nova Floresta. Desde 1982 ele vem aperfeiçoando a máquina, atualmente em sua quinta versão - por isso, o nome.
As primeiras versões das "Faustino" eram estacionárias, grandes demais para as necessidades dos sisaleiros, a maioria pequenos produtores. Há 12 anos, numa visita ao inventor, o pessoal da Apaeb pediu que tentasse desenvolver uma máquina pequena, capaz de deslocar rapidamente de um local ao outro, como é hábito na região. Uma desfibradora de grandes dimensões modificaria radicalmente a cultura e o sistema de produção na região.
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Hora das cabras: Estudantes em aula de zootecnia ao lado do aprisco da escola
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O lema da Apaeb reflete a mentalidade vigente no semi-árido nordestino, vasto mundo com 974 mil quilômetros quadrados de área e 24 milhões de habitantes. O sertão não é mais um lugar inóspito, do qual é melhor se afastar o quanto antes em busca de melhores condições de vida em outras regiões do país. É, sim, um bioma especial, com fauna e flora riquíssimas e precipitação média de 750 milímetros, onde é possível viver dignamente, como a população de Valente vêm demonstrando.
Naturalmente, o sol continua inclemente, o descaso secular do poder público ainda freia a vida e o desenvolvimento. As mudanças, porém, são evidentes, a exemplo da Escola Família Agrícola, uma das mais bem-sucedidas iniciativas de caráter educacional em curso na região sisaleira. Com capacidade para 100 alunos, oferece cursos da 5a à 8a série para jovens de comunidades rurais de oito municípios da região: Santaluz, Queimadas, Conceição do Coité, Retirolândia, São Domingos, Serrinha e Nova Fátima, além de Valente.
A metodologia básica na escola é a da alternância: o que o aluno aprende numa semana na escola, repassa na outra à família. A garotada estuda todas as disciplinas do núcleo comum, como em qualquer escola, complementados com iniciação à zootecnia, agricultura, administração e engenharia rural. "A gente dá uma atenção especial para o armazenamento de alimentos e uso racional da água. Ensina a utilizar forrageiras típicas do semi-árido, como gliricídia, andu, ouricuri e algaroba, além da mucilagem do sisal. Ensina a conhecer e respeitar o sertão", diz a diretora, Marilene Bispo.
Os alunos chegam na segunda-feira e voltam no sábado, alternadamente. Os pais não pagam nada, a não ser, eventualmente, em serviços: uma capina, manutenção de postes, cercas, limpeza de cisternas, pintura etc. "Nossa escola está virando modelo de educação", conclui Marilene.
Considerada a capital brasileira do sisal. Valente deve seu nome a um boi. Consta que, no início do século passado, um novilho se desgarrou da boiada e se perdeu na caatinga. Durante anos, os vaqueiros tentaram pegá-lo, sem sucesso. Arisco, destemido, ele sempre dava um jeito de escapar. Até que um dia foi subjugado e levado para um curral nas cercanias do povoado que deu origem à cidade. O barbatão não aceitou, no entanto, a nova condição. Lutou até morrer. Preferiu se jogar numa vala profunda a se render.
Impressionados com sua coragem, os vaqueiros o batizaram de Valente. A partir daquele dia, o lugar passou a se chamar Povoado do Boi Valente. Com o passar dos anos, virou Vila Valente e, desde 1958, Valente, simplesmente. Situada a 215 quilômetros de Salvador, o município abriga pouco mais de 20 mil habitantes. O boi, porém, continua presente. Ganhou placa no calçadão central da cidade, como se pode ver ao lado. Tornou-se um símbolo para a população.